
Tudo começa no natal.Ou melhor, na véspera de natal.Aquela felicidade pulando nos galhos das árvores.Ruas abarrotadas de bandidos, preparados, em seu espírito natalino, para a ceia financeira.Supermercados entupidos de vítimas não tão vítimas.

Belíssimas cartinhas, com ortografia torta e reprodução de hieróglifos, são enviadas ao bom velhinho; o todo generoso Papai Noel(símbolo do consumismo), que mora no cruzamento do Pólo Norte com Alameda Nunca.
As dores, nas juntas, impedem-lhe de cumprir a sacrossanta missão: quebrar chaminés com renas voadoras.Porém, sabemos que isso só com efeito de alucinógenos.E como não somos Alice, nada de coelho branco, Papai Noel e Paulo Coelho para nós.
Nessa época do ano, as famílias reúnem-se.A hipocrisia, mais solicitada que Roberto Carlos no show da Globo, acompanha cada palavra que sai da boca daquela tia chata.Ou envolve cada repreensão do tio conservador.E, como não

Não adianta.É quase a Guerra Fria.Paz armada.Você prepara a bomba nuclear.Seus pais riem orgasticamente.A tia de quase cem anos pergunta quando você vai casar.O tio religioso prega a Bíblia na varanda de casa.
O primo conta vantagem sobre alguma garota fantasma.E você já passou da contagem de cem.O pensamento latente é: fuja para as colinas.Mas você continua paradinha, quietinha, olhando para o relógio de cinco em cinco minutos.


A música da Simone tocou dez vezes.Papai Noel embriagou-se em um bar qualquer da Rússia.Alguns tios já estão vendo Jesus nascer.Outros falam mal da vida alheia.Seus pais bancam o casal perfeito.Os fogos estouram.Vozes misturam-se. Gargalhadas.Reprimendas.Garrafas.As renas no céu.

Penso que o peru é a maior vítima do natal.Dizem que ele também escreveu uma cartinha ao bom velhinho.Papai Noel leu de olhos fechados.Adeus, peru!Enfim, a ceia.Todo mundo come.O prejuízo aumenta.E a noite acabada.
Quem dera os momentos de confraternizações não fossem tão fraternos assim.Seria bem mais interessante um natal para lavar a roupa suja.Levaríamos uma língua ferina, cheia de acusações, mais rápida que as personagens do faroeste.Vestiríamos coletes à prova de bala.Montaríamos
Essas são as coisas que só fazem sentido no natal, porque, como disse, é uma época de paz interna e reconstrução dos laços familiares.E não há melhor maneira de recomeçar do que destruir tudo, não?
Então, uma semana passa voando, e chegamos ao dia 31 de dezembro.O ponto principal da história.Foi atribuído, ao réveillon, a idéia de renovação.Mentira!É só um feriado que justifica a ressaca alheia.Falam até que é um momento de retomada.Só se for a retomada da garrafa de Johnnie Walker deixada pela metade no natal, a cervejada não feita naquele happy hour, ou a insana vontade de encher a cara.Como não bebo, nada tinha a retomar.Na véspera do ano novo, resolvi que a minha comemoração seria na casa de uma amiga.A noite começou bem.Peguei o ônibus errado.Primeiro, ele quis olhar as paisagens de Fortaleza, e rodou tanto que me deixou tonta.Depois, parou em uma avenida praticamente deserta.E, por fim, percebi que não sabia como chegar à casa dela.Resultado: o réveillon é a retomada da raiva; o aviso prévio de que você vai se estressar muito em 2011.
Com a minha sorte, e se fosse supersticiosa, pularia quatorze ondas.Sim, quatorze completas ondas.No meu caso, sete ondas não resolvem.Preciso assegurar-me de que a sorte não errará de endereço.Mas como sou agraciada pela justiça divina, capaz de afogar-me na terceira onda.Nada de praia para mim.
Após horas de ônibus, minutos sem fim de caminhada, encontro com o condomínio errado e o começo do manquejo, deparei-me com o prédio certo.Aleluias tocaram?Não.Nessa hora, ouvi a música sertaneja vindo da rua.Os sinos não dobraram por mim.Lástima!
Esperei mais uma hora e a minha amiga chegou, depois de um dia de completa exploração no seu trabalho semi-escravo.Porém, faltava o principal de uma comemoração: comida.Ninguém vive sem comida.Ninguém suporta a ausência de algo tão prazeroso.Quando uma festa não presta, você se apega à comida.Você ri da comida.Abraça-a.Quase adota como membro da família.E eis que foi a nossa vez de colocar os talentos culinários em prática.O problema é nossa completa nulidade de talentos na cozinha.Nenhuma sabia cozinhar.Resultado: criação de uma receita secreta, mais tão secreta que nem nós sabíamos o segredo.Prato da noite: arroz papa regado a molho shoyo; macarrão sem gosto entupido de ketchup; ovos deformados e, parcialmente, sem sal.E como não podia faltar, água bem geladinha, já que suco de limão não é o meu forte.Ficou muito bom.Pasmem! E era, exatamente, meia-noite.Fogos explodindo.Comida estranha.E filme na tv: a órfã.
Além das receitas com sabor de loucura, o ano novo traz aquela carga dramática.As pessoas percebem que seus casamentos continuam uma droga.Nenhuma sexóloga daria jeito.As contas não se pagam sozinhas.O trabalho ainda é uma chatice.Seus pais continuarão criticando-lhe.O Papa não morreu.Você está como a Grécia: em crise financeira.E se for solteira(o), o amor sacaneará você novamente.Fora a inspiração da amizade no réveillon; pessoas que nem lhe conhecem vêm abraçar e fazer votos de paz, alegria e felicidade.

O ano entra.A praia suja.Papai Noel adota a ressaca.As famílias voltam à guerra.O mundo continua girando.Você segue envelhecendo.O amor vai rindo.Os amigos somem.As obrigações multiplicam-se.
E o que fazer?
Peça para a felicidade, finalmente, descer da árvore.
(Mari N.)
Peça para a felicidade, finalmente, descer da árvore.
(Mari N.)
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