Peripécias de ano novo

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011





Tudo começa no natal.Ou melhor, na véspera de natal.Aquela felicidade pulando nos galhos das árvores.Ruas abarrotadas de bandidos, preparados, em seu espírito natalino, para a ceia financeira.Supermercados entupidos de vítimas não tão vítimas.O comércio ajoelhando, aos seus pés, como anjo do mal, para endividar-lhe.Os pisca-piscas engatados nas janelas.Piscam tanto que nada iluminam.

Belíssimas cartinhas, com ortografia torta e reprodução de hieróglifos, são enviadas ao bom velhinho; o todo generoso Papai Noel(símbolo do consumismo), que mora no cruzamento do Pólo Norte com Alameda Nunca.
As dores, nas juntas, impedem-lhe de cumprir a sacrossanta missão: quebrar chaminés com renas voadoras.Porém, sabemos que isso só com efeito de alucinógenos.E como não somos Alice, nada de coelho branco, Papai Noel e Paulo Coelho para nós.



Nessa época do ano, as famílias reúnem-se.A hipocrisia, mais solicitada que Roberto Carlos no show da Globo, acompanha cada palavra que sai da boca daquela tia chata.Ou envolve cada repreensão do tio conservador.E, como não pode faltar em toda reunião familiar, tem sempre o primo que se acha a encarnação do Bill Gates.Você conta, mentalmente, de um a dez.


Não adianta.É quase a Guerra Fria.Paz armada.Você prepara a bomba nuclear.Seus pais riem orgasticamente.A tia de quase cem anos pergunta quando você vai casar.O tio religioso prega a Bíblia na varanda de casa.


O primo conta vantagem sobre alguma garota fantasma.E você já passou da contagem de cem.O pensamento latente é: fuja para as colinas.Mas você continua paradinha, quietinha, olhando para o relógio de cinco em cinco minutos.



E todos fingem amor.Claro, é o momento de perdão, reconciliação, retomada de laços.Tanto é assim que, basta entrar o ano novo, a primeira coisa, que o irmão do seu pai diz, é: “aquele mão-de-vaca ainda não pagou o dinheiro que me deve.Tem grana para gastar em festa de natal, mas não tem para pagar meu dinheiro”.Reconciliação sincera, não?Ninguém esquece o bolso.E o melhor é quando os amigos dos seus pais chegam à casa da família.Você não conhece ninguém.Contudo, eles, por alguma implicância reprimida, investigam se você os reconhece.Talvez, não atentem para o fato de que, nos seus três anos, identificar pessoas era tão importante quanto saber o nome dos quatro Beatles.E aproveitando o ensejo, sua mãe, incorporando o espírito político natalino, faz promessas que você não pode cumprir, como o de passar menos tempo no computador(cuidando do blog); iniciar uma dieta( se for gordinha); engordar alguns quilos( se for magrinha); passar em Medicina( mesmo você querendo Jornalismo); arrumar um casamento( ainda que você tenha nojo de compromisso).Mas eu não falarei mal do casamento porque, senão, alguém dirá que é coisa de feminista xiita que deseja destruir os lares com seus pensamentos anarquistas.





A música da Simone tocou dez vezes.Papai Noel embriagou-se em um bar qualquer da Rússia.Alguns tios já estão vendo Jesus nascer.Outros falam mal da vida alheia.Seus pais bancam o casal perfeito.Os fogos estouram.Vozes misturam-se. Gargalhadas.Reprimendas.Garrafas.As renas no céu.Presentes cheios de tédio.Você esquecida no sofá.O relógio que não anda.Bebe água, e é aguardente.Pega um salgadinho.É de frango.Você enjoa.E o peru continua na mesa, com as pernas pro ar, mais desesperado que você, tão estático que não lhe ocorre correr e procurar um amor de natal.



Penso que o peru é a maior vítima do natal.Dizem que ele também escreveu uma cartinha ao bom velhinho.Papai Noel leu de olhos fechados.Adeus, peru!Enfim, a ceia.Todo mundo come.O prejuízo aumenta.E a noite acabada.


Quem dera os momentos de confraternizações não fossem tão fraternos assim.Seria bem mais interessante um natal para lavar a roupa suja.Levaríamos uma língua ferina, cheia de acusações, mais rápida que as personagens do faroeste.Vestiríamos coletes à prova de bala.Montaríamos trincheiras. Descarregaríamos a raiva.Cobraríamos o parente trambiqueiro.Falaríamos mal da religião do tio chato.Mandaríamos a tia intrusa cuidar da própria vida.E quanto ao primo com complexo de Narciso?Engula as histórias falsas, o carro que não tem, o trabalho que não conseguiu, junto ao ego que não pára de crescer.



Essas são as coisas que só fazem sentido no natal, porque, como disse, é uma época de paz interna e reconstrução dos laços familiares.E não há melhor maneira de recomeçar do que destruir tudo, não?


Então, uma semana passa voando, e chegamos ao dia 31 de dezembro.O ponto principal da história.Foi atribuído, ao réveillon, a idéia de renovação.Mentira!É só um feriado que justifica a ressaca alheia.Falam até que é um momento de retomada.Só se for a retomada da garrafa de Johnnie Walker deixada pela metade no natal, a cervejada não feita naquele happy hour, ou a insana vontade de encher a cara.Como não bebo, nada tinha a retomar.Na véspera do ano novo, resolvi que a minha comemoração seria na casa de uma amiga.A noite começou bem.Peguei o ônibus errado.Primeiro, ele quis olhar as paisagens de Fortaleza, e rodou tanto que me deixou tonta.Depois, parou em uma avenida praticamente deserta.E, por fim, percebi que não sabia como chegar à casa dela.Resultado: o réveillon é a retomada da raiva; o aviso prévio de que você vai se estressar muito em 2011.


Com a minha sorte, e se fosse supersticiosa, pularia quatorze ondas.Sim, quatorze completas ondas.No meu caso, sete ondas não resolvem.Preciso assegurar-me de que a sorte não errará de endereço.Mas como sou agraciada pela justiça divina, capaz de afogar-me na terceira onda.Nada de praia para mim.


Após horas de ônibus, minutos sem fim de caminhada, encontro com o condomínio errado e o começo do manquejo, deparei-me com o prédio certo.Aleluias tocaram?Não.Nessa hora, ouvi a música sertaneja vindo da rua.Os sinos não dobraram por mim.Lástima!


Esperei mais uma hora e a minha amiga chegou, depois de um dia de completa exploração no seu trabalho semi-escravo.Porém, faltava o principal de uma comemoração: comida.Ninguém vive sem comida.Ninguém suporta a ausência de algo tão prazeroso.Quando uma festa não presta, você se apega à comida.Você ri da comida.Abraça-a.Quase adota como membro da família.E eis que foi a nossa vez de colocar os talentos culinários em prática.O problema é nossa completa nulidade de talentos na cozinha.Nenhuma sabia cozinhar.Resultado: criação de uma receita secreta, mais tão secreta que nem nós sabíamos o segredo.Prato da noite: arroz papa regado a molho shoyo; macarrão sem gosto entupido de ketchup; ovos deformados e, parcialmente, sem sal.E como não podia faltar, água bem geladinha, já que suco de limão não é o meu forte.Ficou muito bom.Pasmem! E era, exatamente, meia-noite.Fogos explodindo.Comida estranha.E filme na tv: a órfã.


Além das receitas com sabor de loucura, o ano novo traz aquela carga dramática.As pessoas percebem que seus casamentos continuam uma droga.Nenhuma sexóloga daria jeito.As contas não se pagam sozinhas.O trabalho ainda é uma chatice.Seus pais continuarão criticando-lhe.O Papa não morreu.Você está como a Grécia: em crise financeira.E se for solteira(o), o amor sacaneará você novamente.Fora a inspiração da amizade no réveillon; pessoas que nem lhe conhecem vêm abraçar e fazer votos de paz, alegria e felicidade.



O ano entra.A praia suja.Papai Noel adota a ressaca.As famílias voltam à guerra.O mundo continua girando.Você segue envelhecendo.O amor vai rindo.Os amigos somem.As obrigações multiplicam-se.




E o que fazer?

Peça para a felicidade, finalmente, descer da árvore.


(Mari N.)

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