Metafísica IV

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011




Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré (Assaré, Ceará, 5 de março de 1909 — 8 de julho de 2002), foi um poeta popular, compositor, cantor e improvisador brasileiro.




A Triste Partida


Passou-se setembro
outubro e novembro
estamos em dezembro
meu Deus que é de nós?
assim diz o pobre
do seco Nordeste
com medo da peste
e da fome feroz

A treze do mês
fez a experiência
perdeu sua crença
nas pedras de sal
com outra experiência
de novo se agarra
esperando a barra
do alegre Natal

Passou-se o Natal
e a barra não veio
o sol tão vermeio
nasceu muito além
na copa da mata
buzina a cigarra
ninguém vê a barra
pois barra não tem

Sem chuva na terra
descamba janeiro
até fevereiro
no mesmo verão
reclama o roceiro
dizendo consigo:
meu Deus é castigo
não chove mais não

Apela pra março
o mês preferido
do santo querido
senhor São José
sem chuva na terra
está tudo sem jeito
lhe foge do peito
o resto da fé

Assim diz o velho
sigo noutra trilha
convida a família
e começa a dizer:
Eu vendo o burro
o jumento e o cavalo
nós vamos a São Paulo
viver ou morrer

Nós vamos a São Paulo
que a coisa está feita
por terra alheia
nós vamos vagar
se o nosso destino
não for tão mesquinho
pro mesmo cantinho
nós torna a voltar

Venderam o burro
jumento e cavalo
até mesmo o galo
venderam também
e logo aparece
um feliz fazendeiro
por pouco dinheiro
lhe compra o que tem

Em cima do carro
se junta a família
chega o triste dia
já vão viajar
a seca é terrível
que tudo devora
lhe bota pra fora
do torrão natá

No segundo dia
já tudo enfadado
o carro embalado
veloz a correr
o pai de família
triste e pesaroso
um filho choroso
começa a dizer

De pena e saudade
papai, sei que morro
meu pobre cachorro
quem dá de comer?
E outro responde:
Mamãe, o meu gato
da fome e maltrato
mimi vai morrer

A mais pequenina
tremendo de medo
mamãe, meu brinquedo
e meu pé de fulô
a minha roseira
sem água ela seca
e minha boneca
também lá ficou

Assim vão deixando
com choro e gemido
seu norte querido
um céu lindo azul
o pai de família
nos filhos pensando
o carro rodando
na estrada do sul

O carro embalado
no topo da serra
olhando pra terra
seu berço seu lar
aquele nortista
partido de pena
de longe acena
adeus, Ceará

Chegaram em São Paulo
sem cobre e quebrado
o pobre acanhado
procura um patrão
só vê cara feia
de uma estranha gente
tudo é diferente
do caro torrão

Trabalha um ano
dois anos mais anos
e sempre no plano
de um dia inda vim
o pai de família
triste maldizendo
assim vão sofrendo
tormento sem fim

O pai de família
ali vive preso
sofrendo desprezo
e devendo ao patrão
o tempo passando
vai dia e vem dia
aquela família
não volta mais não

Se por acaso um dia
ele tem por sorte
notícia do Norte
o gosto de ouvir
saudade no peito
lhe bate de molhos
as águas dos olhos
começam a cair

Distante da terra
tão seca mas boa
sujeito à garoa
à lama e ao paul
é triste se ver
um nortista tão bravo
viver sendo escravo
na terra do Sul.











Brosogó, Militão e o Diabo


O melhor da nossa vida
É paz, amor e união
E em cada semelhante
A gente ver um irmão
E apresentar para todos
O papel da gratidão

Quem faz um grande favor
Mesmo desinteressado
Por onde quer que ele ande
Leva um tesouro guardado
E um dia sem esperar
Será bem recompensado

Em um dos nossos estados
Do nordeste brasileiro
Nasceu Chico Brosogó
Era ele um miçangueiro
Que é o mesmo camelô
Lá no Rio de Janeiro

Brosogó era ingênuo
Não tinha filosofia
Mas tinha de honestidade
A maior sabedoria
Sempre vendendo ambulante
A sua mercadoria

Em uma destas viagens
Numa certa região
Foi vender mercadoria
Na famosa habitação
De um fazendeiro malvado
Por nome de Militão

O ricaço Militão
Vivia a questionar
Toda sorte de trapaça
Era capaz de inventar
Vendo assim desta maneira
Sua riqueza aumentar

Brosogó naquele prédio
Não apurou um tostão
E como na mesma casa
Não lhe ofereceram pão
Comprou meia dúzia de ovos
Para sua refeição

Quando a meia dúzia de ovos
O Brosogó foi pagar
Faltou dinheiro miúdo
Para a paga efetuar
E ele entregou uma nota
Para o Militão trocar

O rico disse: ─ Eu não troco,
Vá com a mercadoria
Qualquer tempo você vem
Me pagar esta quantia
Mas peço que seja exato
E aqui me apareça um dia

Brosogó agradeceu
E achou o papel importante,
Sem saber que o Militão
Estava naquele instante
Semeando uma semente
Para colher mais adiante

Voltou muito satisfeito
Na sua vida pensando
Sempre arranjando fregueses
No lugar que ia passando
Vendo sua boa sorte
Melhorar de quando em quando

Brosogó no seu comércio
Tinha bons conhecimentos
Possuía com os lucros
Daqueles seus movimentos
Além de casas e terrenos
Meia dúzia de jumentos

De ano em ano ele fazia
Naquele seu patrimônio
Festejo religioso
No dia de Santo Antônio
Por ser o aniversário
Do seu feliz matrimônio

No festejo oferecia
Vela para São João
Santo Ambrósio, Santo Antônio
São Cosme e São Damião
Para ele qualquer santo
Dava a mesma proteção

Vela pra Santa Inês
E para Santa Luzia
São Jorge e São Benedito
São José e Santa Maria
Até que chegava à última
Das velas que possuía

Um certo dia voltando
Aquele bom sertanejo
Da viagem lucrativa
Com muito amor e desejo
Trouxe uma carga de velas
Para queimar no festejo

A casa naquela noite
Estava um belíssimo encanto
Se via velas acesas
Brilhando por todo canto
Porém sobraram três velas
Por faltar nome de santo

Era lindo a luminária
O quadro resplandecente
E o caboclo Brosogó
Procurava impaciente
Mas nem um nome de santo
Chegava na sua mente

Disse consigo: o Diabo!
Merece vela também
Se ele nunca me tentou
Para ofender a ninguém
Com certeza me respeita
Está me fazendo bem

Se eu fui um menino bom
Fui também um bom rapaz
E hoje sou pai de família
Gozando da mesma paz
Vou queimar estas três velas
Em tenção do satanás

Tudo aquilo Brosogó
Fez com naturalidade
Como o justo que apresenta
Amor e fraternidade
E as virtudes preciosas
De um coração sem maldade

Certo dia ele fazendo
Severa reflexão
Um exame rigoroso
Sobre a sua obrigação
Veio na mente os ovos
Que devia ao Militão

Viajou muito apressado
No seu jumento baixeiro
Sempre atravessando rio
E transpondo tabuleiro
Chegou no segundo dia
Na casa do trapaceiro

Foi chegando e foi desmontando
E logo que deu bom dia
Falou para o coronel
Com bastante cortesia:
Venho aqui pagar os ovos
Que fiquei devendo um dia

O Militão muito sério
Falou para o Brosogó
Para pagar esta dívida
Você vai ficar no pó
Mesmo que tenha recurso
Fica pobre como Jó

Me preste bem atenção
E ouça bem as razões minhas:
Aqueles ovos no choco
Iam tirar seis pintinhas
Mais tarde as mesmas seriam
Meia dúzia de galinhas

As seis galinhas botando,
Veja só o quanto dá
São quatrocentos e oitenta
Ninguém me reprovará
Pois a galinha aqui põe
De oito ovos pra lá

Preste atenção Brosogó
Sei que você não censura
Veja que grande vantagem
Veja que grande fartura
E veja o meu resultado
Só na primeira postura

Das quatrocentas e oitenta
Podia a gente tirar
Dos mesmos cento e cinquenta
Para no choco aplicar
Pois basta só vinte e cinco
Que é pra o ovo não gourar

Os trezentos e cinquenta
Que era a sobra eu vendia
Depressa, sem demora
Por uma boa quantia
Aqui, procurando ovos
Temos grande freguesia

Dos cento e cinquenta ovos
Sairiam com despacho
Cento e cinquenta pintinhas
Pois tenho certeza e acho
Que aqui no nosso terreiro
Não se cria pinto macho

Também não há prejuízo
Posso falar pra você
Que maracajá e raposa
Aqui a gente não vê
Também não há cobra preta
Gavião, nem saruê

Aqui de certas moléstias
A galinha nunca morre
Porque logo à medicina
Com urgência se recorre
Se o gogo aparecer
A empregada socorre

Veja bem, seu Brosogó
O quanto eu posso ganhar
Em um ano e sete meses
Que passou sem me pagar
A conta é de tal sorte
Que eu mesmo não sei somar

Vou chamar um matemático
Pra fazer o orçamento,
Embora você não faça
De uma vez o pagamento
Mesmo com mercadoria
Terreno, casa e jumento

Porém tenha paciência
Não precisa se queixar,
Você acaba o que tem
Mas vem comigo morar
E aqui, parceladamente,
Acaba de me pagar

E se achar que estou falando
Contra a sua natureza,
Procure um advogado
Pra fazer sua defesa,
Que o meu eu já tenho e conto
A vitória com certeza

Meu advogado é
Um doutor de posição
Pertencente à minha política
E nunca perdeu questão
E é candidato a prefeito
Para a futura eleição

O coronel Militão
Com engenho e petulância
Deixou o Brosogó
Na mais dura circunstância
Aproveitando do mesmo
Sua grande ignorância

Quinze dias foi o prazo
Para o Brosogó voltar
Presente ao advogado
Um documento assinar
E tudo o que possuía
Ao Militão entregar

O pobre voltou bem triste
Pensando a dizer consigo:
Eu durante a minha vida
Sempre fui um grande amigo,
Qual será o meu pecado
Para tão grande castigo?

Quando ia pensando assim
Avistou um cavaleiro
Bem montado e bem trajado
Na sombra de um juazeiro
O qual com modos fraternos
Perguntou ao miçangueiro:

Que tristeza é esta?
Que você tem, Brosogó?
O seu semblante apresenta
Aflição, pesar e dó,
Eu estou ao seu dispor,
Você não sofrerá só

Brosogó lhe contou tudo
E disse por sua vez
Que o coronel Militão
O trato com ele fez
Para às dez horas do dia
Na data quinze do mês

E disse o desconhecido:
Não tenha má impressão
No dia quinze eu irei
Resolver esta questão
Lhe defender da trapaça
Do ricaço Militão

Brosogó foi para casa
Alegre sem timidez
O que o homem lhe pediu
Ele satisfeito fez
E foi cumprir seu trato
No dia quinze do mês

Quando chegou encontrou
Todo povo aglomerado
Ele entrando deu bom dia
E falou bem animado
Dizendo que também tinha
Achado um advogado

Marcou o relógio dez horas
E sem o doutor chegar
Brosogó entristeceu
Silencioso a pensar
E o povo do Militão
Do coitado a criticar

Os puxa-sacos do rico
Com ares de mangação
Diziam: o miçangueiro
Vai-se arrasar na questão
Brosogó vai pagar caro
Os ovos do Militão

Estavam pilheriando
Quando se ouviu um tropel
Era um senhor elegante
Montado no seu corcel
Exibindo em um dos dedos
O anel de bacharel

Chegando disse aos ouvintes:
Fui no trato interrompido
Para cozinhar feijão
Porque muito tem chovido
E o meu pai em seu roçado
Só planta feijão cozido

Antes que o desconhecido
Com razão se desculpasse
Gritou o outro advogado:
Não desonre a nossa classe
Com essa grande mentira!
Feijão cozido não nasce

Respondeu o cavaleiro:
Esta mentira eu compus
Para fazer a defesa
É ela um foco de luz
Porque o ovo cozinhado
Sabemos que não produz

Assim que o desconhecido
Fez esta declaração
Houve um silêncio na sala
Foi grande a decepção
Para o povo da política
Do coronel Militão

Onde a verdade aparece
A mentira é destruída
Foi assim desta maneira
Que a questão foi resolvida
E o candidato político
Ficou de crista caída

Mentira contra mentira
Na reunião se deu
E foi por este motivo
Que a verdade apareceu
Somente o preço dos ovos
O Militão recebeu

Brosogó agradecendo
O favor que recebia
Respondeu o cavaleiro
Eu era que lhe devia
O valor daquelas velas
Que me ofereceu um dia

Eu sou o Diabo a quem todos
Chamam de monstro ruim
E só você neste mundo
Teve a bondade sem fim
De um dia queimar três velas
Oferecidas a mim

Quando disse estas palavras
No mesmo instante saiu
Adiante deu um pipoco
E pelo espaço sumiu
Porém pipoco baixinho
Que o Brosogó não ouviu

Caro leitor nesta estrofe
Não queira zombar de mim
Ninguém ouviu o estouro
Mas juro que foi assim
Pois toda história do Diabo
Tem um pipoco no fim

Sertanejo, este folheto
Eu quero lhe oferecer
Leia o mesmo com cuidado
E saiba compreender
Encerra muita mentira
Mas tem muito o que aprender

Bom leitor, tenha cuidado,
Vivem ainda entre nós
Milhares de Militões
Com o instinto feroz
Com traçadas e mentiras
Perseguindo os Brosogós.

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