Definitivamente, Florbela Espanca é mestre na expressão dos diversos tipos de dor.A capacidade de interpretação sobre o seu mundo gera temas universais, conseqüentemente achegando-se à catarse.Por isso, fica impossível pensar em um amante de Florbela que seja feliz.Como pode haver identificação entre o meu eu e o eu de Florbela se não temos sentimentos, angústias, medos em comum?O que remete ao segundo grupo: os curiosos.São pessoas que amam a poesia, e não tão somente a figura Florbela.São apaixonados pelas palavras, mas não simbiotizados por seus temas.
Quanto a essa magnífica poetisa, posso dizer que sou apaixonada por seus escritos.Acho-a hábil na inscrição de temas densos, passados por intermédio da leveza e da auto-crítica.Florbela não nos entrega um bojo carregado de tormentas.Ela nos faz vislumbrar o abstrato.Faz-nos sentar e pensar sobre a pilastra que sustenta nossa existência.Florbela é um perigo.Assim como Clarice Lispector é um perigo.Ambas possuem uma obra particular, singular, marcada pela expressão do metafísico, que pode nos levar a uma desconstrução destrutiva.Você nunca é a mesma pessoa ao acabar a leitura de suas obras.
Obras:
-Livro de mágoas , 1919.
-Livro de “Sóror Saudade”, 1923.
-Charneca em flor, 1931
-Cartas de Florbela Espanca(a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli), 1931.
-As máscaras do destino, 1931.
-Sonetos completos, com um estudo de José Régio, 1934.
-O dominó preto, prefácio de Y.K.Centeno, 1982.
-Trocando olhares, Estudo introdutório, estabelecimento de texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra, 1994.
Florbela:
“É o casamento um grilhão de flores e risos?De acordo, mas é sempre um grilhão.Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém mas nunca abdique nem uma das suas graças, nem uma das suas idéias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência que fica tão bem às mulheres bonitas; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro.”
(Carlos Sombrio –OC, p. 35)
“O meu talento!...De que me tem servido?Não trouxe nunca às minhas mãos vazias a mais pequena esmola do destino.Até hoje não há ninguém que de mim se tenha aproximado que me não tenha feito mal.Talvez culpa minha, talvez...O meu mundo não é como o dos outros; quero demais, exijo demais ; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem aonde está, que tem saudades sei lá de quê!”
(Florbela Espanca, Diário do último ano)
“Para que quer esta criatura a inteligência, se não há meio de ser feliz?”, dizia, dantes, meu pai, indignado.Ó ingênuo pai de 60 anos, quando é que tu viste servir a inteligência para para tornar feliz alguém?”
“Viver é não saber que se vive.Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurastênicos.Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade.”
(Florbela Espanca, Diário do último ano)
Referência: (ESPANCA, Florbela. Melhores Poemas; Seleção Zina C. Bellodi)
Minha culpa
A Artur Ledesma
Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém...
Como a sorte, hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou?! Sei lá! Sou a roupagem
Dum doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem! ...
Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...
Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de vaidades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...
O meu impossível
Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!
Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...
Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...
Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo para me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Eu não sou de Ninguém
Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
Há-de ser luz do Sol em tardes quentes;
Nos olhos de água clara há-de trazer
As fúlgidas pupilas dos videntes!
Há-de ser seiva no botão repleto,
Voz no murmúrio do pequeno insecto,
Vento que enfurna as velas sobre os mastros!...
Há-de ser Outro e Outro num momento!
Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!
Inconstância
Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
A minha dor
(A você)
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...
Lágrimas ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Os versos que te fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.
Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !
Mas, meu Amor, eu não t’os digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !
Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
Para quê?!
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
Beijos de amor! P'ra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Nostalgia
Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p’las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!
Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!
Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!
Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!
A Bourbon e Menêses
Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo, de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram, de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,
Da rocha altiva, sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensangüentam na subida!
Tenho pena de mim... pena de ti...
De não beijar o riso duma estrela...
Pena dessa má hora em que nasci...
De não ter asas para ir ver o céu...
De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...
De ter vivido e não ter sido Eu...
Amor que morre
O nosso amor morreu…Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!
Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre…e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.
E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há de vir!
Alma perdida
Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste… e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!…