Florbela Espanca

domingo, 27 de março de 2011




Em 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, Alentejo, nasceu Flor Bela Lobo, filha de João Maria Espanca e Antonia Conceição Lobo, uma das maiores poetisas portuguesas.Embora contemporânea do Movimento Modernista, contrapunha-se a ele por recuperar recursos clássicos da poesia, como o soneto; refletir elementos românticos ao falar sobre a essencialidade do sentimento, o amor; valorizar a musicalidade das palavras, marca do Simbolismo.


Sua poesia é preenchida de nuances, recorrendo a temas como: dor, angústia, mágoa, solidão, amargura, medo,frustração, busca, nostalgia e finitude.A vida de Florbela foi enodoada pela amargura.Era filha “ilegítima” de João Maria Espanca, então casado com Mariana do Carmo Ingleza, que se tornou madrinha da garota.Ele só veio a perfilhar Florbela em 1949, para obter os direitos autorais sobre sua obra.


Florbela vivenciou três casamentos frustrados(com Alberto Moutinho, em 1913; Antonio Guimarães, em 1920; em 1924, com Mário Lage, permanecendo com este até a morte) e isso conjeturou em sua poesia, sobretudo na temática amorosa.Apeles, o amado irmão, três anos mais novo, faleceu em 1927, vítima de um acidente em um dos treinos de pilotagem. Esse foi o golpe mais forte que a poetisa sofreu.Em 1930, Florbela iniciou a escritura do seu diário, o chamado Diário do último ano.E, no mesmo ano, no dia 8 de dezembro, seu aniversário, cometeu suicídio.
É incomum conhecer pessoas que gostem de Florbela Espanca.A maioria nunca ouviu falar.Sua obra é, em grande parte, angustiante, em uma existência não passível de sentido.Costumo dizer que só há duas vertentes possíveis para os amantes, ou dito amantes, dessa maravilhosa poeta: infelizes ou curiosos.Parece duro dizer isso.Florbela era uma confluência de sofrimento.A idéia permanente da impossibilidade da felicidade é um elemento fundamental em sua poesia.E a forma sutil, quase doce, que ela coloca a agonia do substrato vital, dá-nos a sensação de impotência bem-vinda, como se aceitássemos, com dignidade, que somos um paradoxo
efêmero.

Portanto, não há quem simpatize, ame Florbela, sinta catarse, sem ser infeliz.Mas a palavra infeliz pesa.É quase um ônus.Ninguém gosta de se intitular infeliz.Dizem “estou” infeliz, “estou” triste, “estou” miserável.Nunca é sou.É sempre estou, refletindo uma espécie de momento que, por vezes, não chega ao fim.

E cabe, aqui, portanto, a pergunta: o que é a infelicidade?Ou o que seria o seu oposto, a felicidade?Talvez, infelicidade tenha a ver com a busca constante por algo amorfo.Seria, pois, a insatisfação, a incapacidade de viver com o que tem em mãos.Mas o que temos, em mãos, é o subjetivo, a construção da idéia que repousa em um mundo superno, já que tudo é signo.Buscar o sentido da existência pode terminar em sentido algum, ou no pior deles: há, em tudo, uma dose latente de infelicidade.

E o ser que abraça sua infelicidade, sabe sua cerne, não a estigmatiza, não é justamente o ser mais feliz por aceitar sua condição e saber que a desconstrução é a fonte simbiótica da expressão verdadeira?Não é a infelicidade o primeiro passo para permear indagações e contrapor-se ao status?Não seria o choque causado por um processo normativo de disparidade?Não é o sentido das coisas que nos faz percorrer os caminhos mais árduos?E isso lembra Florbela, porque ela era de todo dor.Suas poesias são quase diários, carregadas de tom confessional.Percebemos a carência, a busca irremediável, e a impossibilidade de atingir o ápice.


A poesia de Florbela grita solidão.A infelicidade também.Mas quando falo de solidão, não é um estado de companhia.Refiro-me a um estado de espírito, metafísico, muito além do que podemos definir.Quantos de nós não se sentem incompreendidos, e guardam, para si, a forma de enxergar o mundo, pois é singular?Quantos não evitam os laços por temer a mágoa ou a falta de compreensão?Ou quantos, não sabendo o que é solidão, e amedrontados por uma palavra injuriada, criam laços supérfluos, quase como máquinas que tecem vínculos sociais?Logo, a infelicidade não deveria ser temida.Mas também não deveria ser estimulada.

O processo de ascensão pessoal é a superação da conjunção de histórias, de labores, que vão tomando forma no inconsciente.Porque infelicidade não é no sentido mais asséptico da palavra.

É a reflexão de uma alma confusa, que não sabe o que sonha, não sabe o que procura, mas sente um vazio agudo. Essas são as pessoas capazes de fugir das normas de conduta por tudo aquilo que acreditam.E essa seria a transição entre infelicidade e felicidade; transpor a busca e chegar ao encontro de algo.

Definitivamente, Florbela Espanca é mestre na expressão dos diversos tipos de dor.A capacidade de interpretação sobre o seu mundo gera temas universais, conseqüentemente achegando-se à catarse.Por isso, fica impossível pensar em um amante de Florbela que seja feliz.Como pode haver identificação entre o meu eu e o eu de Florbela se não temos sentimentos, angústias, medos em comum?O que remete ao segundo grupo: os curiosos.São pessoas que amam a poesia, e não tão somente a figura Florbela.São apaixonados pelas p
alavras, mas não simbiotizados por seus temas.

Outra característica interessante da obra da poetisa portuguesa é o papel da mulher, que ocupa encargo central.A mulher é mostrada como um ser humano, onde residem expressões universais.Então, por que aclamar essa característica quando, teoricamente, mulheres são consideradas seres humanos?Simples: ainda hoje, o cinema, a música, a construção da linguagem, são atividades, em maioria, voltadas para o homem, refletindo o status quo, fazendo a manutenção das relações de hierarquia, e não reconhecendo mulher como um ser humano dotado de autonomia.Já disse em vários posts, e direi nesse novamente: a língua é ideológica, assim como os demais ofícios humanos.E Florbela Espanca, impreterivelmente, trabalha a figura feminina, não restringindo o espaço da mulher à esfera privada, com condutas de mãe ou esposa.Florbela opôs-se ao sistema dual da mulher, pois rompeu com as normas da época e tornou-se uma poeta, parte que cabia aos homens, pois era deles a ocupação da reflexão.




Quanto a essa magnífica poetisa, posso dizer que sou apaixonada por seus escritos.Acho-a hábil na inscrição
de temas densos, passados por intermédio da leveza e da auto-crítica.Florbela não nos entrega um bojo carregado de tormentas.Ela nos faz vislumbrar o abstrato.Faz-nos sentar e pensar sobre a pilastra que sustenta nossa existência.Florbela é um perigo.Assim como Clarice Lispector é um perigo.Ambas possuem uma obra particular, singular, marcada pela expressão do metafísico, que pode nos levar a uma desconstrução destrutiva.Você nunca é a mesma pessoa ao acabar a leitura de suas obras.


Obras:


-Livro de mágoas , 1919.
-Livro de “Sóror Saudade”, 1923.
-Charne
ca em flor, 1931
-Charneca em flor, com 28 sonetos inéditos, 1931.
-Cartas de Florbela Espanca(a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli), 1931.
-As máscaras do destino, 1931.
-Sonetos
completos, com um estudo de José Régio, 1934.
-Diário do último ano, prefácio de Natália Correia, 1981.
-O dominó preto,
prefácio de Y.K.Centeno, 1982.
-Obras completas de Florbela Espanca, de 85-1986, 8 volumes, edição de Rui Guedes.
-Trocando olhares, Estudo introdutório, estabelecimento de texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra, 1994.




Florbela:

“É o casamento um grilhão de flores e risos?De acordo, mas é sempre um grilhão.Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém mas nunca abdique nem uma das suas graças, nem uma das suas idéias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência que fica tão bem às mulheres bonitas; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro.”
(Carlos Sombrio –OC, p. 35)

“O meu talento!...De que me tem servido?Não trouxe nunca às minhas mãos vazias a mais pequena esmola do destino.Até hoje não há ninguém que de mim se tenha aproximado que me não tenha feito mal.Talvez culpa minha, talvez...O meu mundo não é como o dos outros; quero demais, exijo demais ; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem aonde está, que tem saudades sei lá de quê!”
(Carlos Sombrio – OC, p.35)


“A minha vida!Que gâchis!Se eu nem mesmo sei o que quero!”
(Florbela Espanca, Diário do último ano)


“Para que quer esta criatura a inteligência, se não há meio de ser feliz?”, dizia, dantes, meu pai, indignado.Ó ingênuo pai de 60 anos, quando é que tu viste servir a inteligência para para tornar feliz alguém?”
(Florbela Espanca, Diário do último ano)


“Viver é não saber que se vive.Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurastênicos.Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade.”
(Florbela Espanca, Diário do último ano)


Referência: (ESPANCA, Florbela. Melhores Poemas; Seleção Zina C. Bellodi)




Poesias



Minha culpa


A Artur Ledesma


Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém...

Como a sorte, hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou?! Sei lá! Sou a roupagem
Dum doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem! ...

Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de vaidades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...





O meu impossível


Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...





Eu


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo para me ver
E que nunca na vida me encontrou!





Eu não sou de Ninguém


Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
Há-de ser luz do Sol em tardes quentes;
Nos olhos de água clara há-de trazer
As fúlgidas pupilas dos videntes!

Há-de ser seiva no botão repleto,
Voz no murmúrio do pequeno insecto,
Vento que enfurna as velas sobre os mastros!...

Há-de ser Outro e Outro num momento!
Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!





Inconstância


Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...




A minha dor


(A você)

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...




Lágrimas ocultas


Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!




Os versos que te fiz


Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !

Mas, meu Amor, eu não t’os digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !

Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!





Para quê?!


Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos de amor! P'ra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...




Amar!


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...




Nostalgia


Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p’las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!





A Minha Piedade

A Bourbon e Menêses


Tenho pena de tudo quanto lida
Neste mundo, de tudo quanto sente,
Daquele a quem mentiram, de quem mente,
Dos que andam pés descalços pela vida,

Da rocha altiva, sobre o monte erguida,
Olhando os céus ignotos frente a frente,
Dos que não são iguais à outra gente,
E dos que se ensangüentam na subida!

Tenho pena de mim... pena de ti...
De não beijar o riso duma estrela...
Pena dessa má hora em que nasci...

De não ter asas para ir ver o céu...
De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...
De ter vivido e não ter sido Eu...






Amor que morre


O nosso amor morreu…Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre…e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há de vir!




Alma perdida


Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente…
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste… e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz!…





Florbela é, em toda sua extensão, a expressão da condição humana.Para mim, ela é incomparável.


(Mari N.)

0 comentários:

Tecnologia do Blogger.
 
A Tormenta Social | by TNB ©2010