O desafio da livre determinação feminina sobre o próprio corpo

quarta-feira, 22 de junho de 2011



- 1 milhão de abortos são realizados, anualmente, no Brasil. (ONG Católicas pelo Direito de Decidir)
-1 em cada 7 mulheres brasileiras já fez aborto. (CFEMEA)
-O aborto clandestino causa 602 internações diárias e é a terceira maior causa de morte materna no Brasil. (CFEMEA)


E, mesmo com toda essa situação alarmante em torno dos óbitos maternos, só há 8 propostas voltadas para a livre determinação da mulher sobre o próprio corpo.

E ainda tem gente que não consegue ver, ou prefere não ver, a relação entre a tolha da liberdade individual, esse cerceio em torno da autonomia físico-mental feminina, com o machismo arraigado no tecido social.

É, infelizmente, como disse Flora Tristan: “mesmo o homem mais oprimido pode oprimir outro ser, que é sua própria mulher. A mulher é a proletária do homem”.

Mas as mulheres não serão segmentadas e exploradas para sempre.E é essa necessidade de mudança que move o Feminismo.


(Mari N. e Bia G.)

6 comentários:

Adriano Cabral disse...

Ninguém tem livre disposição do próprio corpo. A lei veda a venda de õrgãos por exemplo. Portanto, a falácia que a "liberdade" de dispor do corpo é questão de gênero é apenas falácia. De outro lado, há milhões de furtos e roubos todos os anos, com grande numero de vitimas e internações, não obstante existir leis proibindo. Não é por causa disso que vamos discriminalizar o furto.
Por fim, existe dezenas de métodos contraceptivos, a mulher deve ser livre para fazer sexo com quem quiser e como entender mas responsabilizar-se desde o HPV que pegue, a AIDS ou CANCER (esses aí não dão pra abortar) ou uma criança. Liberdade é linda, principalmente quando exercida com responsabilidade.
Pra terminar quem foi que disse que a vida concebida nas vias uterinas de uma mulher é parte do CORPO DELA? É muita arrogância mesmo hein!
Enfim.
é isso.

As tormentas disse...

1)Sim, a lei veda a venda de órgãos.Mas não proíbe a doação de órgãos, por exemplo.Portanto, determinar sobre o corpo, não como mercadoria, mas na lógica da autonomia pessoal, da deliberação individual, é questão de gênero quando se parte de um sistema patriarcal, onde o Estado reproduz exatamente os padrões comportamentais da sociedade, porque o Estado, como agente regulador, e exercido por homens, é inteiramente passível de influências autocráticas machistas. Já não cabe ao Estado a esfera físico-mental do indivíduo quando isso é de fórum pessoal e não interfere nas teias sociais subjacentes.
Qual a primeira propriedade privada da História?Engels responde: a mulher.E onde ele responde: a origem da família, da propriedade privada e do Estado.O próprio Marx, juntamente com o Engels, no livro A ideologia alemã, tem uma colocação muito interessante e que pode justamente fazer a ponte na relação indivíduo-Estado: “os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, uma consciência, e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de idéias, que regulamentam a produção e a distribuição dos pensamentos de sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes de sua época”.
A classe dominante, desde que a mulher foi tomada como propriedade , é o patriarcado.E a mulher foi, portanto, colocada, ao longo da história, em uma posição servil, restrita à vassalagem.Por conseguinte, dentro da lógica da dominação masculina, e aqui entra Bourdieu, fica claro a construção de um capital simbólico transposto nas relações sociais.Simone de Beauvoir trabalha o sistema de oposições proposto por Lévi-Strauss, onde, dentro de um processo de centralização, conceituação, de um determinado grupamento, cria-se uma cisão, dando origem a dois grupos distintos: o Eu( os homens) e o Outro(as mulheres).Se o Eu está no centro, é caracterizado como essencial, como sujeito da ação, então é a mulher que se diferencia dele, e não o contrário.Portanto, o grupo do Outro toma a forma antagônica, na contrariedade de todas as características do grupo do Eu.Se o homem é visto como essencial, a mulher é vista como não-essencial.Se o homem é visto como absoluto, a mulher é tida como relativa.Se o homem é o sujeito, a mulher é coadjuvante.E por que eu tô fazendo todo esse levante?Pra contextualizar e trabalhar essa dicotomia de gêneros dentro de uma lógica de dominação e subjugação.Nem o Estado nem as leis são imunes a isso, já que nascem como produto de uma sociedade permeada por ideais de hierarquização de sexos.Então, cai por terra isso de dizer que não tem a ver com gênero.

As tormentas disse...

2)Não faz o menor sentido fazer uma comparação entre furto e aborto.Primeiro que furto fere os direitos inalienáveis do outro indivíduo.E é um processo de apropriação que fere a ética.Fere a liberdade individual do outro.Em um sistema que apregoa a propriedade privada, e antes do objeto, habita ali a idéia da posse sobre o objeto, qualquer ação que fira essa conjuntura prejudica as relações sociais, que ganham sentidos dissonantes e, até mesmo, de patologias sociais, como é o caso da violência. Sendo que a violência já é produto de uma série de fatores sócio-econômicos e ausência de políticas públicas de assistência.O furto não diz respeito unicamente ao indivíduo, porque ele fere o direito do outro, e isso transpõe o limite do fórum pessoal.É completamente diferente do aborto.O aborto não fere o direito de nenhum outro indivíduo da sociedade.Não fere a liberdade individual do próximo.Não fere a ética.O aborto é um processo íntimo, que diz respeito apenas ao corpo daquela mulher.
E, provavelmente, você vai falar do feto, creio eu, porque sempre falam que isso viria a ferir o direito de um monte de células que a mulher leva dentro dela.E aí eu posso falar sobre uma coisinha básica que eu consegui aprender nas minhas aulas de Biologia: não há consenso científico, filosófico ou religioso sobre o que é a vida.E é justamente a idéia de vida que precede toda a discussão sobre o aborto.O que é a vida?Quando a vida começa?
Aqui, cabe uma importante declaração de uma das maiores geneticistas do Brasil: Lygia da Veiga.Ela diz que, dentro da nossa legislação, considera-se um corpo violável aquele com morte cerebral.No momento em que cessa a atividade cerebral, pode-se doar órgãos, e não vender órgãos, porque, nesse contexto, o determinar é diferente de dispor.Logo, se a morte cerebral é definida como o marco para o fim da vida, então por que a formação do sistema nervoso não pode ser considerada como o marco do início da vida, já que está exatamente no contraponto? Suponho que saiba que o sistema nervoso começa a se formar a partir da décima semana de gestação.Até esse período, pasmem, é só um aglomerado de células que não sente absolutamente nada.Agora, se você é contra a doação de órgãos, tudo bem, vai fazer sentido que seja contra o aborto.Mas se não é, então vai haver uma clara contradição.E, dentro da lógica de Aristóteles, não é verdadeiro aquilo que está em contradição.

As tormentas disse...

3)Nesse caso, ainda há duas lacunas importantes que devem ser preenchidas quanto à temática do aborto.Primeira coisa: 1 milhão de mulheres(dados das organizações: OMS; Pesquisa Nacional do Aborto(PNA); UFL; CFEMEA; FPA) praticam aborto anualmente no Brasil (percebe-se que criminalizar não impede a prática).Esses abortos levam à morte de milhares de mulheres, em geral pobres e negras (isso tá na pesquisa da PNA, UNB e UERJ).Percebe-se, inclusive, que não tem a ver somente com gênero, mas também com estratificação social e a problemática do racismo, que ainda persiste fortemente no Brasil.Vale lembrar, também, que abortos clandestinos saem caro para os cofres do Estado.Seria mais aprazível, em termos financeiros, descriminalizar o aborto, porque daí sairia mais barato para os cofres estatais.Mas deixando a questão financeira de lado, é preciso centralizar a questão humana.Mulheres estão morrendo.E estão morrendo aos montes.Mulheres pobres e negras estão virando um pedaço de carne nas mãos de açougueiros. Muitas vezes, usam práticas arcaicas para se livrarem de uma gravidez indesejada: jogar-se do alto de uma escada; enfiar agulha de tricô na vagina; misturar remédios.Vamos deixá-las morrer?Isso sim é bem humanista, não?
Segunda coisa: vivemos em Sociedade.Pra vivermos bem, temos que legitimar a diferença.Para que haja legitimação, é preciso conceber que o outro pensa, age, de forma diferente.Uma legislação que criminaliza o aborto não salva vidas.Deixa a mulher completamente desamparada.É uma legislação produto do machismo arraigado na sociedade.É inteiramente parcial e objetifica a mulher.Ela cerceia a liberdade individual no tocante ao que se considera vida dentro de uma lógica intimista.Portanto, pessoalmente, um indivíduo pode sim achar o aborto errado, uma mácula a sua alma, mas não pode interferir na escolha da outra pessoa, porque isso é de fórum pessoal.Um aglomerado de células, sem SN, é um anexo.Sim, um anexo.Assim como um tumor é um anexo.Assim como meu apêndice é um anexo.E o Estado , por exemplo, não pode me impedir de fazer a retirada de um tumor ou de um apêndice, porque isso está dentro do meu corpo, só diz respeito ao meu corpo, coloca em xeque a minha saúde, portanto parte de determinação individual que não fere os direitos do meu próximo. E o aborto entra nessa linha de pensamento: um monte de células dentro do corpo da mulher, provocando transformações físicas-mentais-químicas no corpo da mulher( o que coloca a saúde dela em xeque), e isso só diz respeito a ela porque parte de uma esfera íntima, que não fere os princípios do outro.Logo, em uma sociedade justa, lógica, igualitária, a descriminalização seria a única alternativa viável.Nos países desenvolvidos, onde a legislação permite o aborto, os índices de aborto são baixíssimos.Já nos países onde o aborto é criminalizado, os índices são altos.Pode-se falar, por exemplo, sobre a permissão do aborto em casos de estupro.Você é contra?Suponho que não seja.Então, isso só mostra que a preocupação não é com o conceito de vida, ou com um monte de células que a mulher é obrigada a carregar, mas sim em como a mulher engravidou.Se foi sem ela querer, então ela é livre pra se desprender daquele símbolo de mácula ao corpo.Mas se foi por vontade própria, então deve aguentar as consequências, e uma delas é o risco de morrer em abortos clandestinos.Isso também é bem humanista e nada arrogante, né?Por que, afinal, quem foi que disse que o Estado tem direito de escolher quem vive e quem morre?

As tormentas disse...

4) Sou a favor sim de um processo de conscientização e , principalmente, da construção de um planejamento familiar descente que, finalmente, venha a contemplar as mulheres. O fato de falar que a mulher não pode abortar HPV nem AIDS mostra que você desconhece completamente o perfil da mulher que aborta.As organizações como a Fundação Perseu Abramo, a UNB em conjunto com a UERJ, a PNA e a CFEMEA trazem dados que projetam o perfil da mulher que aborta.E pasmem novamente: é cristã, casada, entre 20 e 29 anos, e já tem pelo menos um filho.A pesquisa da UNB com a UERJ foi financiada pelo Ministério da Saúde, e mostrou que mais de 70% das mulheres que abortam são casadas.Então, essa idéia da mulher transar com quem ela quiser vai pelo ralo, porque o contexto do aborto é a relação monogâmica estável.Será que essas mulheres, realmente, em sua totalidade, decidiram sozinhas sobre se deveriam levar ou não em frente a gravidez?Acho que a resposta é meio óbvia.

As tormentas disse...

5)Quando falo em aborto, penso na mulher que não tem assistência a um sistema de saúde descente, que não tem apóio familiar, que não tem renda que garanta sua sobrevivência,e nem mesmo estimativas de melhoria de vida.Tendo em vista a necessidade de defender os interesses da coletividade, de deliberar sobre a coisa pública visando a garantia dos direitos básicos de sobrevivência, o Estado entra em contradição por não levar em consideração essas mulheres que já sofrem suficientemente com a marginalização que o sistema impõe.O Estado fecha os olhos para elas quando elas precisam de assistência médica.O Estado fecha os olhos para elas quando elas precisam de planejamento familiar.O Estado fecha os olhos para elas quando elas precisam de uma educação sobre o próprio corpo.
Outra coisa que é importante lembrar é que os métodos contraceptivos não são 100% seguros, como, por exemplo, demonstra o índice de falha da camisinha, que é altíssimo, em torno de 12% a cada 100 mulheres.Então, não é tão simples quanto parece.

E volto a dizer o que a Flora Tristan havia dito: “mesmo o homem mais oprimido pode oprimir outro ser, que é sua própria mulher. A mulher é a proletária do homem”.

Se a mulher é o grupo do Outro, e o Outro é relativo e não-essencial, ele passa a ser o objeto, e isso foi materializado nas palavras de Engels.Se o grupamento dominante é dos homens, eles que fomentaram o capital simbólico, e daí advém as relações de dominação.Dominação sobre o objeto(mulher).Por conseguinte, dominação sobre o corpo e o comportamento da mulher.

No fim, nunca tem a ver como defesa da “vida” ou princípios religiosos.Tem a ver com o ato gerador do embrião.Se gerou prazer pra mulher, ela que arque com as consequências desse prazer.

-Aborto em caso de estupro pode, porque aí a “vida” do feto já não faz diferença.Aborto como livre determinação do corpo não pode.

-Doar órgãos pode, já no contexto de inexistência de atividade cerebral(considerado pela medicina como a morte do indivíduo, tanto que considera o indivíduo como corpo violável).Mas fazer aborto até os quase 3 meses de gravidez( quando o sistema nervoso ainda está em formação) não pode.

-Defender os direitos do embrião pode.E isso soa até humanista.Mas defender o direito de mulheres pobres e negras no que diz respeito à preservação da sua integridade física e mental não pode.O embrião é, portanto, superior à vida da mulher.Tenho certeza que essa conclusão reforça bastante a idéia humanista em defesa do embrião.

-Culpar mulheres pelo aborto pode.Mas analisar o perfil da mulher que aborta, mostrando que elas estão inseridas em relações estáveis e monogâmicas, não pode, porque com certeza só quem aborta é jovenzinha que transa com todo mundo.

-O Estado fechar os olhos para esses mulheres pode.Mas o Estado não pode, como instituição que visa o bem-estar coletivo, garantir a vida desse 1 milhão de mulheres.

Sinceramente, no fim, é tudo a mesma coisa: legislar sobre o corpo da mulher.Porque é exatamente isso que o Estado está fazendo ao cercear a liberdade individual e imputar a essas mulheres uma série de sofrimentos físicos e mentais.Mas sentir empatia por mulher é muito difícil mesmo.Imaginar o quão doloroso é a modificação pela qual uma mulher passa, em um processo de gravidez forçada, ninguém quer.

É, e concordo quando você diz: a liberdade é linda quando exercida com responsabilidade.Pena que o Estado é tão irresponsável, e que o machismo mate, anualmente, milhares de mulheres inocentes.

Concluo com uma citação do Poulain de La Barre: “os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios”.

Sem mais.

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