Antes de tudo, é preciso esclarecer a diferença entre liberdade de expressão e permissividade de expressão.A primeira consiste em responsabilidade, e não tão somente no auto direito de verbalizar aquilo que parte de um julgamento subjetivo, constituído por uma herança de símbolos culturais, e que, portanto, não obrigatoriamente está submetido à lei de concórdia social(respeito ao bem-estar coletivo).E, em termos de direito à liberdade de crença, não é preciso discutir.É assegurada, a cada indivíduo da nação, a prática de sua crença.Teoricamente, claro.Desde que essa crença não seja produto de uma cultura afro, ou pagã, porque, então, direta ou indiretamente, sabemos que os movimentos fundamentalistas vão caçá-las, tal qual fazem com os homossexuais (porque, de fato, esses grupos fundamentalistas não se importam com a igualdade.Mas sim com a imposição e aniquilação das variabilidades sociais).E os homossexuais são o alvo da vez.A marcha para Jesus, ocorrida no dia 23 de junho de 2011, em São Paulo, virou ato contra os direitos homossexuais:
"Quem defende o homossexualismo e a maconha está aqui a serviço de Satanás", disse o auxiliar de informática Natanael da Silva Santos, de 19 anos, que foi à marcha usando calça apertada, cinto de taxinhas e a tradicional franja emo. Enquanto a reportagem entrevistava os jovens, a aposentada Jovelina das Cruzes, de 68 anos, ouviu a conversa e fez uma intervenção. "Vocês estão falando sobre o que não conhecem. Meu sobrinho é gay e é um rapaz maravilhoso. Ótimo filho, muito educado, muito honesto e estudioso. Já o meu filho é machão e vive batendo na esposa, não respeita ninguém, não para no emprego."
Quando Jovelina virava as costas para continuar a marcha Natanael, que não se deu por vencido, fez uma observação. "Cuidado, tia. Se o pastor escuta a senhora falando uma coisa dessas ele não deixa mais a senhora entrar na igreja". E Jovelina respondeu. "Igreja é o que não falta por aí. Se me impedirem de ir em uma, vou em outra. Não tem problema."
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Isso mostra a intolerância crescente. Expõe, também, os instrumentos de controle sobre as massas.Uma manobra mesquinha de líderes religiosos que estão preocupados com o ter ao invés do ser.Ainda que parte da marcha tenha ido professar o amor a Deus, a outra parte, e essa é mais relevante por acusar um sintoma de perseguição, estava lá para combater a igualdade.Sim, combater a igualdade.O que é verdadeiramente triste partindo de um ser humano que conclama a liberdade de expressão, a liberdade de crença, e combate a liberdade de ser de um outro semelhante.E, por mais paradoxal que pareça, são movimentos cristãos.
Sinceramente, gostaria que ninguém acreditasse em um livro escrito por homens, com seus pré-juízos, e que objetivavam manter a casta de benefícios.Adoraria que as pessoas confiassem na ética.E penso assim porque já não creio em um ser imaterial, perfeito, que tudo sabe, então nem mesmo a bíblia faz diferença.Mas tem gente que acredita.Eu, por exemplo, já acreditei.Então, relembrando minha época religiosa, vejamos alguns trechos bíblicos que são fundamentais na constituição de um cristão:
Mateus : Capítulo 7
1 NÃO julgueis, para que não sejais julgados.
2 Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.
3 E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?
4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?
5 Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.
Mateus : Capítulo 22
34 E os fariseus, ouvindo que ele fizera emudecer os saduceus, reuniram-se no mesmo lugar.
35 E um deles, doutor da lei, interrogou-o para o experimentar, dizendo:
36 Mestre, qual é o grande mandamento na lei?
37 E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento.
38 Este é o primeiro e grande mandamento.
39 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
40 Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.
Marcos : Capítulo 12
28 Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido disputar, e sabendo que lhes tinha respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?
29 E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o SENHOR nosso Deus é o único Senhor.
30 Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
31 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.
32 E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele;
33 E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios.
34 E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada.
Lucas: Capítulo 18
18 E perguntou-lhe um certo príncipe, dizendo: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna?
19 Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que é Deus.
20 Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe.
21 E disse ele: Todas essas coisas tenho observado desde a minha mocidade.
22 E quando Jesus ouviu isto, disse-lhe: Ainda te falta uma coisa; vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me.
23 Mas, ouvindo ele isto, ficou muito triste, porque era muito rico.
24 E, vendo Jesus que ele ficara muito triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!
25 Porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.
26 E os que ouviram isto disseram: Logo quem pode salvar-se?
27 Mas ele respondeu: As coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus.
28 E disse Pedro: Eis que nós deixamos tudo e te seguimos.
29 E ele lhes disse: Na verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa, ou pais, ou irmãos, ou mulher, ou filhos, pelo reino de Deus,
30 Que não haja de receber muito mais neste mundo, e na idade vindoura a vida eterna.
Há alguns dias atrás, Myrian Rios, deputada estadual pelo PDT-RJ, ao fazer suas considerações sobre a PEC-23, no plenário da Alerj (Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro), associou homossexualidade à pedofilia, e teceu uma série de injúrias aos homossexuais brasileiros.Para quem não sabe, a Myrian Rios é católica, missionária da comunidade Canção Nova.E para quem não sabe, também, a PEC-23 é uma emenda à constituição do RJ, que coloca a orientação sexual no plano dos direitos fundamentais.Esta mulher beócia, que se acha uma política ética, não sabe nem mesmo o que é orientação sexual.Ela fez um discurso repleto de preconceitos, e inseriu a homossexualidade no rol das patologias.
-Myrian Rios, os piores pedófilos são aqueles que se escondem atrás das batinas.Combata primeiro esses.Combata primeiro a hipocrisia clerical.Aproveita e aprende a fazer um discurso digno, que seja analítico sobre a conjuntura social , e que não incite o ódio às minorias.
A Myrian Rios é mais uma que usa a bíblia para justificar as próprias iniquidades. Não vou colocar o vídeo com o discurso desta beócia porque não vale a pena.É fácil de encontrar no youtube.Prefiro colocar a sátira, que faz jus a sua incapacidade cognitiva:
Vale salientar, também, que a liberdade de expressão deixa de ser liberdade quando fere a ética.A prerrogativa de liberdade assevera a legitimação da diferença e, com isso, resguarda os direitos do outro.Usar o juízo de valor para remontar a perseguição e o ódio indiscriminado é uma maneira tacanha de assegurar privilégios de uma classe dominante, em geral a dos heterossexuais brancos da classe média.E isso não quer dizer que todo heterossexual branco da classe média introduz e reproduz conceitos limitados de aversão à diferença.Entretanto, é inegável a presença de nichos retroativos que objetivam a construção da linearidade social, e que se colocam acima da ética ao reproduzir discursos intolerantes que induzem à perseguição.E, se isso não é crime, então o que é?
Crime é usar imunidade parlamentar para reproduzir alocuções inflexíveis e incitar o ódio às minorias.Crime é coadunar abertamente com políticos reacionários, que defendem, inclusive, a tortura.Crime é fazer uso da máquina política para tolher a liberdade de algum grupamento social.Crime é a relativização dos assassinatos de homossexuais.Crime é a violência física-psicológica-social que a mulher sofre todo dia.Crime é a segregação racial.Crime é a estratificação econômica.Crime é usar o kit anti-homofobia como moeda de troca para manter político antiético. Crime é ser representante do povo, mas deliberar sendo norteado pela fé particular, e colocá-la acima do bem-estar da população, que pluricultural. Crime é fazer piada sobre vítimas de estupro.Crime é marginalizar pessoas com alguma limitação física ou psicológica.Crime é usar o nome de um deus para humilhar e subalternizar pessoas inocentes.Crime é a quebra da isonomia social.Isso sim é crime.Ou melhor, isso sim deveria ser crime, porque, infelizmente, nosso país ainda garante um liberalismo quase patológico no âmbito da “manifestação de pensamento”.Algo que não é liberdade, porque fere a dignidade do outro.É, sim, uma permissividade doentia, de infiltração das mais mordazes ideologias classicistas.Ausência do respeito, do bom senso, da legitimação da diferença.É a ferida aberta no coração da política.Falar, de forma irresponsável, as crenças individuais não significa livre exercício do pensamento.Significa livre exercício da manutenção de privilégios.Significa livre exercício da sobreposição de costumes.Significa livre exercício de um processo etnocêntrico.A liberdade que muitos conclamam não passa da liberdade de ofensa.É a forma prática de imputar, ao outro, o grupo diferente, padrões comportamentais.Fazer o outro ser enxergado como amoral, mesmo que seja impossível ser amoral. Afastar o outro do centro das decisões sociais.A permissividade doentia é exercida, sobretudo, por grupos conservadores, grupos que se colocam em posição “civilizada”, como algo excepcional.E só essa reorganização dos espaços sociais mostra a crença na superioridade, que vai embutida nos discursos de ódio que esses defensores da liberdade preconizam.A liberdade de expressão, para eles, não passa de um instrumento de coerção.A repressão à diferença.A repressão à luta pela igualdade.
E é exatamente essa permissividade que precede a existência de alguns políticos brasileiros.Esses politiqueiros esquecem que, embora tenham sido eleitos por uma parte da população, eles governam para todos, e não tendo em vista apenas os interesses da parcela que os elegeu. Eles governam para os gays, para os negros, para pessoas com alguma limitação física ou mental, para os pobres, para os velhos, para os ateus.A função política, no momento de sua ação, deve ser superior à fé, porque a política é um ofício fundamental.Se não consegue essa imparcialidade, pois que não entre na política, porque ela é configurada pela deliberação da coisa pública visando o bem-estar coletivo, de todos os segmentos, e não só daquele que lhe convém.Portanto, a política, em termos de desenvolvimento da sociedade, é inclusiva.Não é exclusiva, com base em preceitos religiosos, ou no que quer que seja.Essa política inclusiva é ética, porque obedece os direitos inalienáveis do indivíduo.
Para completar, preciso falar da liberdade de expressão como elemento avalizador da coesão social, e não da cisão social. Aquele que conclama a verdadeira liberdade sabe que ela implica em respeito, e que possui limites, e o limite é o direito, o espaço, a dignidade do outro.Não da crença.Não da idéia.Não do dogma.Mas o resguardo do ser humano, que pensa, age e vive diferente.Nenhum discurso deve se sobrepor ao direito à vida, ao direito à igualdade, ao direito à continuidade do outro.Quando a dita liberdade de expressão fere a dignidade do outro, ela não é mais liberdade, mas sim um profundíssimo senso de superioridade, e uma permissividade doentia que tem levado à morte da ética.
(Mari N.)