Em alguns momentos da vida, é necessário fazer um exame de consciência, que nada mais é que um diagnóstico de nossa humanidade.A crônica, intitulada Réquiem, do escritor Milton Dias(*1919 - Ipu - CE; + 1983 - Fortaleza - CE), volta-se para a reflexão sobre a existência, sobre as escolhas, sobre a nossa percepção da realidade.
Antes da leitura, gostaria de registrar algumas observações:
-Sugiro que faça essa leitura, à noite, quando as emoções se tornarem mais intensas, tomando conta de cada pequeno compartimento da sua alma.
-Sugiro que escute uma música suave, porém profunda, e que tente avaliar quem você é de verdade.
-Sugiro que faça uma contabilidade afetiva, lembrando-se dos bons e maus momentos.
-Sugiro que leia vagarosamente, degustando cada linha, e tente transpassar seus sentidos limitados.
-Sugiro que se questione sobre o que é realmente valoroso em um mundo tão indiferente quanto o nosso.
-Sugiro que se dispa de qualquer envoltório, e seja capaz de reconhecer o peso de suas ações.
-Sugiro que, ao reconhecer o ônus dos seus atos, tenha humildade para reconstruir seu alicerce vital.E que essa nova construção seja suficiente para iluminar o seu espírito.
-E se não puder seguir as sugestões, sugiro que lamentemos, juntos, a cruz de sua insensibilidade, e desejemos, também, que a vida não te castigue tanto antes do suspiro derradeiro.
Réquiem
Já foi aurora, foi manhã e foi tarde, agora é crepúsculo, e o homem que assistiu a tudo e não semeou bem está cheio de desespero diante da noite próxima. O homem que só encontrou tempo para se encher de dinheiro e de egoísmo.
Nas candeias do pensamento, queima o óleo do pessimismo devorante e da angústia assassina, usa melancolia no coração inquieto e em torno de si só descobre amargura. Porque não fez amigos nem entre os seus mais seus.
À mesa sentou sozinho porque não interessava a comunicação, mas a gula. E no banquete não confraternizou mais se satisfez. E ignorou a companhia mais próxima.
À fonte dos desejos compareceu ávido e assíduo, mas cedo a avareza lhe quebrou o encanto, como o cântaro da lenda.
Enquanto era sol, não semeou amor e colhe arrependimento. Não cultivou amizade e recolhe desprezo. Não praticou a bondade, nem conheceu a beleza.
Foi superficial em tudo, menos no amealhar.
Onde as boas memórias deveriam florir para aquecer seu inferno, só encontra remorso.
Consulta o céu e não enxerga estrelas. Procura a lua cheia e é quarto minguante. Indaga da luz e só recebe a resposta da sombra. Busca o verde e descobre cinza. E, no canteiro de cardos que não foram plantados, nasceu um pé de Solidão junto dum pé de Tristeza.
Aí começa o drama.
Carente de ternura, com os lábios queimados de todas as taças, a boca lembrada de muitas bocas, as mãos vazias, o coração enfermo, olha em torno e só encontra uma réplica negativa, uma voz que vem de dentro de si mesmo, na terrível tomada de consciência, que é antes uma profunda auto-acusação retardatária.
Quer volta, não pode: o tempo impiedoso é irreversível e marcha sempre.Ninguém lhe pode impedir a caminhada ameaçadora dentro da escuridão. Traz no bojo um monstro que se chama medo e que vai ser solto pela boca da noite e vai crescer pelas horas mortas da madrugada.
Na distribuição de sentimentos entre os que o cercam, como numa festa de prendas, nem ódio mereceu.Só indiferença. Na hora da classificação, foi esquecido.Porque no instante da decisão omitiu-se. Na hora da escolha, falhou. No momento da palavra solidária, silenciou.Na vez do gesto de ajuda, a mão encolheu.
Nas bodas, foi o Egoísta; na família, o Indesejado; nas ocasiões generosas da filantropia, o Grande Ausente; nos festejos do congraçamento nacional, o Apátrida.
O homem é o espectro do homem.
A mulher que não suportou a opressão, a vileza e a miséria, partiu.
Os filhos desgarraram, não encontraram o caminho de volta, enjoados e temerosos. Esperam aflitos o momento da participação.
Sozinho, sem mulher, sem filhos, sem amigos, cantar já não sabe, orar nunca soube, ajudar nunca pôde.E a língua que recriminava fácil, que era rápida na acusação e fluente no ataque, está muda. A mão que era leve na punição injusta está impotente.Os olhos indiscretos que humilhavam estão cegos.No abraço egoísta, perdeu o calor do seu próprio corpo.A antiga força é uma sombra vã.
Não ouve, não vê, não fala, não anda.
Aprendeu a chorar, nesta hora de sol posto.Sentado numa arca abarrotada, aguarda a noite que se aproxima com seu cortejo de pavores, carregada de desespero.
(Mari N.)